terça-feira, 11 de junho de 2019

Coerência processual e a suposta colaboração entre juízes e promotores, no Conjur


Na foto: três almofadinhas golpistas

“O problema ali não era a captação do diálogo e a divulgação do diálogo, era o diálogo em si, o conteúdo do diálogo, que era uma ação visando burlar a justiça. Este era o ponto.”
(Atual ministro Sergio Moro em entrevista concedida a Pedro Bial em abril de 2019, se referindo ao vazamento de conversa telefônica entre a ex-presidente Dilma e o ex-presidente Lula)
A história é implacável na questão da coerência. A história cobrará de cada um o preço do desrespeito à dogmática.
No dia de ontem (9/6) foi publicada uma informação, no site The Intercept Brasil, a respeito de determinados fatos ligados à operação lava-jato. Substancialmente, o presente texto versa sobre um dos assuntos: a notícia de que um magistrado possa ter orientado a atuação do Ministério Público.
Ninguém dirá que juízes e promotores devem ter seus celulares devassados, afinal, é incontroversa a necessidade de proteção da integridade física, moral e funcional destes. É necessário, entretanto, e isso não se confunde com a proteção de que eles precisam, que se dê uma explicação cabal e adequada sobre esses possíveis fatos.
Não se pode é consagrar um regime de exceção, um regime de totalitarismo processual, de ativismo processual. A outra coisa que precisa ser dita é que não é papel de um juiz, quem quer que ele seja, orientar as investigações. O juiz atua, na fase de investigação, como um garantidor para evitar que excessos aconteçam. Então não é papel de um juiz dizer que a ordem das investigações deve ser alterada. Não é papel de um juiz dizer que não é possível passar mais do que 30 dias sem uma fase da operação estar nas ruas. Um juiz não age como acusador ou como defensor, mesmo porque, quem seria a pessoa capaz de exercer a defesa técnica se o juiz assume pra si os ares da acusação?
Isso, ao mesmo tempo, viola o sistema acusatório – se é que sistema acusatório existiu neste país algum dia. Acho que algumas pessoas só parecem se dar conta das supostas violações ao sistema acusatório mais recentemente.
Além disso violar o sistema acusatório, colocaria em xeque de imparcialidade todos os sujeitos processual envolvidos. TODOS. Porque não é possível que haja um consórcio entre investigadores e juízes para combater fatos, por mais graves que eles sejam.
Observe-se que, se verdadeiros forem os fatos (no condicional mesmo), todos os atos decisórios estariam inquinados de iniquidade, haja vista que a parcialidade acusatória passaria a ser a tônica de todos os processos, não se restringindo a alguns atos de alguns deles.[2]
Mas vejamos o que disseram, até o momento, os sujeitos processuais mencionados.
Vamos primeiro às manifestações indiretas, sobre o procedimento, para, depois, tratar do mérito.
Primeiramente, externaram legítima preocupação em terem sido hackeados, o que, se aconteceu, seria gravíssimo. Com efeito, não se pode nem mesmo imaginar que pessoa alguma tenha a sua intimidade devassada, ainda mais quando se resguardam interesses institucionais, seja de juízes, seja de promotores, seja de advogados e de escritórios de advocacia, que, não raro, são interceptados até com ordens judiciais.
Por coerência, tão cara e rara nos dias atuais, não cometerei os mesmos erros em que incorreram. Impõe-se dizer que, se hackeados forem, as provas são ilícitas para investigar os sujeitos processuais, mas não são, decididamente, ilícitas para anular os processos em que atuaram, máxime porque a prova ilícita pode repercutir para a anulação dos procedimentos investigativos. Ou seja, não é prova ilícita para condená-los, é prova ilícita pro reo, para anular os processos.
Secundariamente, vociferou-se contra o fato de a notícia se valer de anonimato.
Ah, a coerência. a coerência dogmática. A coerência processual. Até quando, oh catilinas, continuarão a abusar das nossas boas vontades? Mais uma vez, falamos do preço que pagamos pela coerência.
Deltan Dallagnol defende, numa cruzada nacional de hercúleo esforço, junto com as “10 medidas contra a corrupção” – que uma notícia anônima pode dar início a uma investigação, e a mesma se torna necessária, uma vez que seu objetivo central é levar “atos corruptos” ao conhecimento dos cidadãos.
Mas não era só a opinião de Deltan, essa foi a tônica de todo o movimento da tal das 10 medidas.
Nunca fui a favor deste tipo de denúncia anônima, e continuo não sendo a favor, mas acredito que, a partir do momento que você defende uma tese veementemente, você deve ser coerente a ela. Fui e sou contrário; continuarei sendo contrário, mas só agora alguns presentantes do MPF se posicionaram contra? Como ficará o projeto das tais dez medidas agora?
O inferno são os outros, diria Sartre. Pode ou não pode haver investigação com base em notícia anônima?
Reclamou-se, ainda, da publicidade dos fatos e da inexistência de manifestação cabal dos mencionados para poderem rebater as imputações supostas que se lhe fizeram. Ah, a coerência. Durante anos a fio investigados eram enxovalhados diuturnamente, com publicações parciais de textos de investigação, sem que, aparentemente, qualquer autoridade constituída demonstrasse alguma irresignação. Veja-se o que se afirmou:
4. Merece registro o fato de que nenhum pedido de esclarecimento ocorreu antes das publicações, o que surpreende e contraria as melhores práticas jornalísticas. Esclarecimentos posteriores, evidentemente, podem não ser vistos pelo mesmo público que leu as matérias originais, o que também fere um critério de justiça. Além disso, é digno de nota o viés tendencioso do conteúdo divulgado, o que é um indicativo que pode confirmar o objetivo original do hacker de, efetivamente, atacar a operação Lava Jato, aspecto reforçado pelo fato de as notícias estarem sendo divulgadas por site com nítida orientação ideológica.
Ora, nas exaustivas entrevistas das infindáveis fases da operação lava jato, houve um mínimo ato de preocupação com o equilibro de forças? Com a paridade de armas?
A coerência…
Agora vejamos o que se diz no mérito. Recentemente, em julgamento perante um tribunal superior, ouvi algo de que jamais me esquecerei na minha vida profissional: talvez inconscientemente, um presentante do MPF, querendo matar a autonomia do processo penal, vaticinou: “quem discute o processo não tem razão no mérito”. Um despautério processual, registre-se, mas vejamos o que os sujeitos processuais falam do mérito.
Praticamente nada. Rien de tout, como dizem os franceses. Esboçaram dizer que as conversas foram retiradas de um contexto. Ora, de que contexto falam? Se verdadeiros os fatos forem, como explicar o inexplicável?
7.Os procuradores da força-tarefa manifestaram aqui preocupação com possíveis mensagens fraudulentas ou retiradas do devido contexto. A força-tarefa da Lava Jato estará à disposição para prestar esclarecimentos sobre fatos e procedimentos de sua responsabilidade, com o objetivo de manter a confiança pública na plena licitude e legitimidade de sua atuação, assim como de prestar contas de seu trabalho à sociedade.
O sr. ministro diz, em entrevista, que juízes conversam com advogados e policiais. Isso é obvio, é um atributo de civilidade e um dever inerente ao cargo. Mas não se fata de conversar, e sim de orientar, de dirigir a atuação ministerial.
Se verdadeiro, viciaria a imparcialidade do julgador, e, uma vez inquinada, neste caso, isso mal fere toda prova produzida. Afinal, qual é o grau de imparcialidade de um juiz que auxilia e orienta os investigadores e promotores?
Luigi Ferrajoli disse certa feita que:
“por mais que se esforce para ser objetivo, está sempre condicionado pelas circunstâncias ambientais nas quais atua, pelos seus sentimentos, suas inclinações, suas emoções, seus valores ético-políticos” (FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 46.)
“Não há nada de mais no conteúdo.” Esta foi uma frase dita por Sérgio Moro na manhã desta segunda-feira. Para além do pleonasmo vicioso (se não há nada, ou o erro é grotesco – o que se imagina – ou se não há nada é porque coisa há), curioso é não lembrar, ato contínuo, do teor das conversas, mesmo sempre (ou quase sempre) emprestando valor de verdade absoluta a palavra de delatores de fatos ocorridos há mais de década.
Não se argumente, ainda, que as sentenças foram confirmadas em diversas instâncias, porque o judiciário não conhecia destes supostos fatos, que, registre-se, ainda não se sabe verdadeiros.
E quero crer, ainda, que, se tais fatos forem verdadeiros, os tribunais pátrios não vacilarão em reconhecer as nulidades, porquanto mais que evidentes, ainda que contrarie a vontade das maioria das pessoas. Afinal de contas, é fundamental que o judiciário preserve a sua função contramajoritária.
Fico me perguntando como o juiz Moro julgaria a conduta de quem orienta acusadores e como os procuradores da República atuariam diante de tais fatos, se a eles fosse dado o ônus de investigar isso.
E não me venham com o argumento utilitarista/eficientista de que isso irá anular a operação lava jato. Porque, se houver anulação da lava jato, o ônus disso tudo é de quem deu causa às eventuais nulidades da operação. Cobrem-se dos responsáveis isso.
Sei que isso que eu vou falar agora vai desatender e desagradar a muitos. Eu sei que, na visão popular, as pessoas acham que os fins processuais justificam os meios. Mas, há limites impostos na CF e no Código de Processo Penal que PRECISAM ser respeitados.
Encerro lembrando de uma certa casa verde (sem generalismos irresponsáveis, a mesma cor que orna o cordonê da beca dos juízes federais), por coincidência, diria Machado de Assis, fazendo rememorar Simão Bacamarte – em sua magnífica obra O Alienista:
“A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no Oceano da razão. Começo a suspeitar que é um Continente.”
Acho que o louco devo ser eu.
[1] https://www.conjur.com.br/2016-mai-05/gamil-foppel-afastamento-cunha-nao-sustenta-juridicamente
[2] Seria irremediável tentar salvar o processo de uma nulidade deste jaez. O juiz estaria, se verdade for, agindo como acusador.
Gamil Föppel El Hireche é advogado, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro das comissões de Reforma do Código Penal e da Lei de Execução Penal, nomeado pelo Senado Federal.